Nosso grupo se orienta a partir de dois eixos de problemas principais. Abaixo eles são brevemente apresentados, na sequência mesma com que se delinearam a partir de nosso percurso nas ciências sociais.
Palavras chave: Capitalismo. Classes sociais. Trajetórias. Socializações. Mundo da vida.
Considerada a partir de uma dimensão macrossociológica, uma sociedade de mercado, onde quer que emerja e se consolide historicamente, não existe desentranhada de outras demandas sistêmicas e culturais, e desvinculada de uma configuração institucional mais ampla onde assenta, não apenas sua vigência, como sua própria legitimidade. Suas desigualdades estruturantes e limites sistêmicos, assim como a eficácia do "espirito do capitalismo" cuja diversidade de feições as acompanha e sanciona em cada tempo e lugar, não “adentram”, conformam ou produzem unilateralmente as instituições, agentes e as estruturas subjetivas sobre as quais se amparam. Percebemos que essas mesmas injunções, quando consideradas a partir de uma escala de análise mais próxima à realidade vivida pelos agentes sociais, tensionam as mais distintas formas de vida, de relações e de experiências compartilhadas. Sua estrutura e dinâmica de classes, com suas inúmeras segmentações e cisões internas, tensões e ambiguidades constitutivas, se entrelaçam ao conjunto de engajamentos e de sentidos com que a vida social se apresenta para todos e cada um de nós, o que mais nos importa, e o que nos constitui.
Desse amálgama entre sistema socioeconômico e mundo da vida, da forma como se entreconstituem, se retroalimentam, e se "colonizam" mutuamente, mas também dos inúmeros atritos, sofrimentos e crises tanto coletivas como pessoais que esse (des)encontro pode ocasionar, resultam significativos impactos e desafios para o mundo social em geral, para as formas institucionais que seus conflitos assumem, assim como para a emergência das atuais formas de individualidade. Conforme o momento histórico, a legitimidade de uma forma de dominação, e a hegemonia de um grupo ou da coalização entre classes e forças sociais distintas (econômicas, religiosas, políticas) que a viabiliza, podem se consolidar não apenas institucionalmente mas “nos corações e mentes” de forma mais ou menos duradoura. Ao mesmo tempo, em razão da própria natureza complexa das formações sociais contemporâneas, da forte heterogeneidade e das inúmeras microdivisões verificadas no seio de suas classes sociais, nenhum regime de acumulação e sistema de crenças (indissociavelmente econômicas e morais) que as acompanhe predominam sem abalos sobre outras éticas de vida, necessidades e aspirações individuais, e sem ambiguidades coletivamente compartilhadas alternando entre distintos graus de crença e cinismo.
Um mesmo horizonte de classes pode, assim, se apresentar entre os diferentes agentes que o compartilham sob a forma de esperanças e desesperanças, crises existenciais ou de motivação, alegrias ou sofrimentos familiares. E uma maior interdependência da economia mundial, do centro e da periferia do capitalismo, pode resultar na conformação de um sistema de estratificação compatível com uma intensa desorganização e esfacelamento das formas e laços de vida coletiva que compõem esses horizontes, variando desde estruturas sociais de experência anômicas a micro-universos de mundos vividos inconciliáveis e incomunicáveis entre si.
A partir dessas colocações, a seguinte questão se apresenta: como desvelar a força e resiliência históricas de nossos padrões de desigualdade e de estratificação evitando tanto uma visão reducionista em relação à complexidade e densidade dos fios da vida pelos quais são constituídos seus agentes, suas motivações e formas de agir, sem, por outro lado, recair em uma perspectiva celebratoriamente voluntarista, ideológica e incapaz de situar essas trajetórias no quadro das mesmas desigualdades estruturantes que pré-condicionam seu universo de possíveis assim como sua própria estrutura subjetiva?
Nessa direção, nosso grupo se esforça por revelar a cartografia de socializações que integram as diferentes classes de agentes a uma sociedade de mercado, assim como os conflitos (sistêmicos e vivenciais) inerentes a esse processo. Conforme dizíamos ao início, uma sociedade não é um mercado, assim como um mercado não é uma sociedade mas um subsistema em uma formação social altamente complexa. Seus mecanismos de coordenação, e seus agonismos inerentes, apenas se efetuam mediados pela relativa autonomia, e pela densidade própria, do espaço histórico e institucional mais amplo de relações, experiências sociais e tradições culturais, espaço em conexão com o qual conformam um metabolismo ampliado.
Nele está implicado um arco de possibilidades objetivas (ocupacionais, ascensionais, escolares, de rendimentos do capital ou do trabalho) mais ou menos amplo ou restrito conforme se trate de grupos dominantes, frações médias, camadas populares, setores urbanos ou rurais, assim como da natureza de sua vinculação sistêmica. Não obstante, com a intenção de superar esse momento de unilateralidade analítica e reintegrá-lo em um quadro interpretativo mais amplo, o recurso teórico e metodológico àquela cartografia de socializações e experiências nos permite reconstruir, no seio desse sistema de posições diferenciais, o tecido hermenêutico mais amplo que nele se enreda, o qual é cerzido por nossos vínculos laborais, matrimoniais, familiares, amistosos, comunitários, religiosos, etc.
Se falamos em metabolismo ampliado é porque, sendo o trabalho, conforme a economia política clássica, dispêndio de energia, e criação de valor, essas relações e experiências sociais ampliadas são as fontes de valor e de energia para o próprio trabalho.
Elas participam, assim, do horizonte de sentidos pelo qual vivenciamos as fronteiras de nossas condições de existência, e por conseguinte não podem deixar de ser consideradas na reconstrução e análise das lógicas de motivação e de ação de seus agentes relativas à reprodução ou transformação coletiva ou individual de sua posição no espaço social. Com essas questões em mente, e a partir de uma perspectiva que se coloca em oposição a toda forma de explicação monista e unilateral (economicismo, culturalismo), nosso grupo tem precisamente como objetivo pesquisar a sociogênese das estruturas subjetivas que medeiam uma sociedade de mercado a partir da multiplicidade de determinações que as informam.
Palavras-chave: Sociologia geral. Crítica da razão sociológica. Comunidade de vida epistêmica. Razáo prática.
Dos desafios oriundos das práticas investigativas apresentadas em nosso primeiro eixo, emergem algumas questões que se mostram, para nós, decisivas para uma adequada compreensão do mundo social. Como treinar um olhar sociológico capaz de integrar dominação material e simbólica com a pluralidade de subsistemas sociais e culturais, e por conseguinte, com a polivalência e diversidade da experiência vivida? Com efeito, como restituir uma imagem menos fragmentada do mundo social, capaz de ampliar o entendimento de suas múltiplas determinações constitutivas enquanto totalidade pensada, que nada tem a ver com uma ingênua pretensão de exaustividade quantitativa?
Não podemos deixar de constatar os prejuízos, em termos de inteligibilidade sociológica, resultantes da atual fragmentação do conhecimento que manifesta em si mesma uma tendência do mundo social contemporâneo. Para seu êxito,toda divisão do trabalho necessitaria ser epistemologicamente bem fundamentada e responder a necessidades oriundas do próprio saber a cujo fim deveriam servir. Uma especialização bem compreendida certamente não se confunde com a forte tendência à multiplicação e fragmentação de subdivisões disciplinares (e.g. desigualdades econômicas, de oportunidades, patrimoniais, educacionais, raciais, etc.) que ignoram-se reciprocamente (ou são associadas ad hoc, sem intenção sistemátca), obstando assim qualquer possibilidade de cumulatividade, comunicabilidade e suporte recíproco.
A nosso ver, todos e cada um desses mesmos "recortes" parcelizados, assim como os "dados" que daí resultam, não obstante sempre e necessariamente analisados a partir de uma determinada especialidade, condensa e manifesta em si uma multiplicidade de determinações que os enreda a todos em condições sociais de existência mais amplas que, estas sim, são dotadas de significação sociológica.
Essas questões, decisivas para uma melhor compreensão do mundo social, nos encaminham para a importância de um esforço de elucidação pressuposicional.
É nesse âmbito que podemos argumentar que uma especialização bem compreendida (diferentemente de seu desvirtuamento para o que costumamos chamar de especialização de antolhos) requer parâmetros mais orgânicos e comunicacionais de organização institucional. Apenas assim ela pode ser pensada como ofício, abrangendo o domínio consciente de todas as etapas ou, mais precisamente, momentos da prática científica, preservando assim o sentido do que fazemos em sua integralidade. Esses momentos incluem desde seus pressupostos críticos e fundacionais, perpassando pela reflexão epistemológica e problematização teórica, até os desafios oriundos das experiências do campo ou do emprego das técnicas mais concretas. Eles se pressupõem reciprocamente, e por isso não se reduzem uns aos outros. Sua interdependência e interpenetração dialéticas permitem a relativa autonomia de cada nível da pesquisa, ao mesmo tempo em que nos habilitam a superar a respectiva e inevitável unilateralidade de cada um.
Ademais, em sua dimensão epistemológica, esse exercício de autoesclarecimento pressuposicional idealmente requerido em toda e qualquer pesquisa sociológica, nos leva à compreensão de que toda sociologia especializada se apresenta como instanciação (no mais das vezes inconsciente) de uma sociologia geral que reverbera e transcorre em nossos objetos particulares, ainda que apenas se revele por meio deles. Sua elaboração, ao mesmo tempo que se nutre da pluralidade paradigmática que caracteriza as ciências sociais, permite que essa pluralidade se torne fecunda, ao mesmo tempo em que a protege do movimento de autodissolução.
Uma sociologia geral não se confunde, nem o poderia dada a inesgotável variabilidade de nossos valores e horizontes hermenêuticos, com uma teoria substantiva particular. As sociologias especializadas que praticamos nos fornecem, elas mesmas, a possibilidade de um aprendizado que, desde que se propondo ao mesmo tempo dialógico, cumulativo e contínuo, é suscetível de antecipar uma inalcançável linguagem geral a qual, no mesmo movimento, contribui para pré-delinar. Apenas essa linguagem geral pode nos levar a conhecer as instituições, representações e práticas sociais à luz do reconhecimento de sua infinita diversidade e irredutibilidade, sem com isso abrir mão de prefigurar, nesse reconhecimento mesmo, a possibilidade de autocompreensão da forma sócio-histórica de existência que somos nós.
Mas a recuperação dessa linguagem geral, enquanto razão teórica, é ao mesmo tempo comunicação e aprendizado histórico, antecipando já a partir de si mesma o horizonte que orienta nossa razão de ser, e com ele a possibilidade de autocompreensão, conquista e preservação do sentido inscrito no que somos (em termos históricos e sob uma dimensão crítica) e fazemos (cientificamente em geral e sociologicamente em particular) enquanto comunidade epistêmica, e de nosso lugar no mundo sócio-histórico. Conhecer o mundo é uma forma de nele, e com ele, se relacionar, e não pode deixar de implicar uma forma particular de razão prática. A tradição sociológica, como toda tradição histórica, manifesta uma forma de vida que lhe é singular. E como toda tradição, esta pode ou não assumir sua autoconsciência.
A opção por desconsiderar os pressupostos que informam nosso pensamento e ação significa apenas que preferimos escanteá-los ao nível da não consciência, e com eles as responsabilidades que nos incumbem perante a história no seio da qual nos situamos. Sempre corremos o risco de tatear esses pressupostos, reconhecer sua existência implícita sem verdadeiramente conhecê-los, sobretudo quando habitualmente "importamos" toda reflexividade teórica e pré-teórica, conforme nos induz a posição dominada que ocupamos na divisão mundial do trabalho intelectual em geral e científico em particular. Mas ao se descobrir como espírito do mundo, aprendendo com todas as forças sociais e individualidades históricas, e por isso mesmo não se reduzindo a nenhuma delas, o espírito sociológico pode retribuir ao mesmo mundo o aprendizado que com ele obteve; e, ao resguardar esta possibilidade de autocompreensão racional, histórica e crítica, contribuir para a humanização que tem como horizonte e pressuposto ético-normativo revelar e, assim, co-realizar.
Publicações recentes
A natureza do social: contribuições e limites do realismo crítico para as ciências humanas. Cadernos do Ateliê - Ensaios, artigos e debates. Vol. 2, n. 1, Fasc. 2, 2024.
Artigo
Disponível em: https://ateliedehumanidades.com/2024/11/15/fios-do-tempo-cadernos-do-atelie-a-natureza-do-social-contribuicoes-e-limites-do-realismo-critico-para-as-ciencias-humanas-por-thiago-panica-pontes/
Em coautoria com Frédéric Vandenberghe: Um novo mapa da teoria social contemporânea. In: VANDENBERGHE, Frédéric; CAMARGO, Alexandre de Paiva Rio (Orgs.). Teoria social contemporânea: um laboratório. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2023.
Introdução
Disponível em: https://zenodo.org/records/10702527
"Projetos de vida" sem mundo da vida? Um diálogo crítico com a sociologia de Margaret Archer (capítulo) & Com Frédéric Vandenberghe: Um novo mapa da teoria social contemporânea (Introdução). In: VANDENBERGHE, Frédéric; CAMARGO, Alexandre de Paiva Rio (Orgs.). Teoria social contemporânea: um laboratório. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2023.
Capítulo
Disponível em: https://zenodo.org/records/10702527
Em coautoria com Liana Lewis. Notas sobre o conceito de fascismo na atualidade. In: RAMIRO, Patrícia; FRANCH, Mónica; AMORIM, Ninno. In: Ciências Sociais em debate: crise e crítica em tempos da COVID-19. João Pessoa: Ed. UFPB, 2022.
Capítulo
Disponível em: http://www.editora.ufpb.br/sistema/press5/index.php/UFPB/catalog/book/1056
Sombras hermenêuticas de uma força viva: Pierre Bourdieu e o espaço da educação no Brasil. In: ROCHA, Maria Eduarda da (Org.). Bourdieu à brasileira. Rio de Janeiro: COnfraria do Vento, 2022.
Capítulo
Disponível em: https://zenodo.org/records/10702509
Classes, individualidade e dominação nas sociedades contemporâneas. NORUS - Novos rumos sociológicos, v. 9, n. 15, p. 319-348, Jan./Jul. 2021.
Artigo
Disponível em: https://revistas.ufpel.edu.br/index.php/sociologicos/article/view/3613
Em coautoria com André Magnelli. Serge Paugam: apresentação do autor e visão do conjunto de sua obra & Entrevista com Serge Paugam: De quantos laços é feita a sociedade? Repensar a solidariedade. Pontos de leitura. Ateliê de Humanidades, 2021.
Texto de apresentação seguido de entrevista com o autor
Disponível em: https://ateliedehumanidades.com/2021/01/27/pontos-de-leitura-serge-paugam/
As entranhas do gigante e a sociogênese do golpe. In: LEITE, Fatima M.; LEWIS, Liana (Orgs.). 2016: o ano que não acabou. Recife: Ed. UFPE, 2020.
Capítulo
Disponível em: https://editora.ufpe.br/books/catalog/book/517
Em coautoria com André Magnelli. O fim de uma era: para uma sociedade maior que o mercado. Fios do tempo. Ateliê de Humanidades, 2020.
Artigo seguido de tradução de Thomas Piketty